Futebol ao ritmo da Fortuna

Nos últimos anos, o universo futebolístico tem testemunhado a entrada em cena de um novo grupo de protagonistas: magnatas, sobretudo oriundos dos países de Leste e do Médio Oriente, que marcaram o início de uma nova era no futebol mundial. Chelsea, Manchester City ou Paris Saint-Germain são os exemplos mais mediáticos, mas também os mais bem-sucedidos deste novo paradigma. Em sentido inverso, clubes como o Málaga, foram obrigados a libertar os seus melhores jogadores para responderem a todas as dívidas que foram acumulando durante um período em que o sucesso desportivo se revelou efémero.

Simultaneamente, clubes como o CSKA de Moscovo, o Zenit de São Petersburgo ou o Shakhtar Donetsk têm reclamado por um papel de destaque cada vez maior na Europa do futebol, depois de saborearem a conquista da antiga Taça UEFA em 2005, 2008 e 2009, respectivamente. Por detrás desta força exibida pelos principais emblemas da antiga União Soviética, estão, invariavelmente, os muitos milhões que têm sido injectados por sujeitos como Roman Abramovich (era o accionista maioritário da Sibneft, antigo patrocinador do CSKA de Moscovo, carrasco do Sporting na final de 2005) ou por empresas como a Gazprom (detém, desde 2005, o Zenit de São Petersburgo) que têm permitido a estes clubes recrutarem indiscutíveis mais-valias para os seus plantéis.

Com o mesmo tipo de ambição, mas numa fase embrionária do seu projecto, o Kairat Almaty procura repetir a façanha do Shakhter Karagandy, que em 2013, se tornou no primeiro clube proveniente do Cazaquistão, a marcar presença na fase de grupos de uma competição europeia, depois de uma derrota com o Celtic no playoff da Liga dos Campeões, que lhe valeu a repescagem para a Liga Europa. Um objectivo a que o Kairat agora se propõe.

Depois de afastar os escoceses do Aberdeen na terceira pré-eliminatória, o actual detentor da Taça do Cazaquistão, que já deixou pelo caminho o antigo campeão europeu Estrela Vermelha e o Alashkert da Arménia, medirá forças no playoff da Liga Europa com o maior favorito Bordéus, mas a equipa francesa está alertada para o recente momento de forma do clube mais representativo do futebol cazaque e para os problemas que este lhe poderá causar.

Fundado em 1954, o Kairat pode orgulhar-se de ser o único clube do Cazaquistão a ter participado no campeonato da antiga União Soviética. Ao todo, foram 24 aparições, a melhor das quais, em 1986, coroada com um modesto 7º lugar. Em 1971, o Kairat fez história, tornando-se no primeiro clube soviético a conquistar um troféu internacional, a já extinta Taça dos Clubes Ferroviários Europeus, uma competição semi-profissional, não reconhecida pela UEFA e que só permitia a inscrição de trabalhadores ferroviários. Porém, após a dissolução da União Soviética, o clube não tem conseguido replicar este sucesso, ainda que tenha conquistado a primeira edição do Campeonato do Cazaquistão, em 1992.

Daí para cá, o Kairat só repetiu o título nacional em 2004, antes de atravessar uma profunda crise financeira – provocada pelo afastamento da Kazakhstan Temir Zholy, o seu principal patrocinador – que ditou a saída dos seus principais jogadores e que teve como corolário a descida à segunda divisão em 2008 por incumprimentos financeiros.

De regresso ao primeiro escalão no ano seguinte, o Kairat procura desde então por recuperar um lugar no trono do futebol cazaque, suportado pelos investimentos do seu presidente Kairat Boranbayev, um dos homens mais influentes e poderosos do país, que acumulou fortuna enquanto director da KasRosGaz, principal empresa de exploração de gás natural no Cazaquistão e subsidiária da Gazprom, que por sua vez, é a maior exportadora de gás natural no mundo.

O clube é orientado desde 2012 por Vladimir Weiss, técnico eslovaco que se notabilizou ao serviço do Artmedia de Bratislava, quando em 2005, e depois de garantir o título nacional na temporada anterior, selou um apuramento inédito para a fase de grupos da Liga dos Campeões. No percurso, afastou o Kairat, o seu actual clube, na primeira pré-eliminatória. Por cá, ficou célebre depois de operar uma memorável reviravolta no Dragão, nessa mesma campanha. Confrontados com uma desvantagem de dois golos, os eslovacos reduziram o marcador em cima do intervalo, antes de gelarem o estádio com um 3-2 final, que acabou por empurrar os azuis e brancos, de sobremaneira, para o último lugar do grupo H, do qual Inter de Milão e Glasgow Rangers também faziam parte.

Cinco anos mais tarde, garantiu um apuramento, também ele inédito, para a fase final do Mundial da África do Sul, ao leme da selecção eslovaca, ditando o afastamento precoce da selecção italiana, actual campeã do mundo, durante a fase de grupos, antes de ser afastado pela congénere holandesa, nos oitavos-de-final. Depois de falhar o apuramento para o Euro 2012, Weiss abandonou o comando técnico da Eslováquia e aceitou o convite do Kairat, onde se mantém até aos dias de hoje.

Os resultados falam por si, ainda que não possam ser dissociados do investimento que tem sido feito pelo seu presidente. Weiss retirou a equipa da cauda da tabela e conduziu-a ao pódio, repetindo o 3º lugar nas últimas duas temporadas. Em 2014, o Kairat quebrou um jejum de títulos com mais de uma década após a conquista da taça. No campeonato, o clube tem feito valer a sua condição de visitado, conquistando desta forma, 27 dos 44 pontos que lhe valeram o primeiro lugar – em igualdade pontual com o Aktobe – durante a fase regular. O seu recinto dá pelo nome de Central Stadium e está sediado na cidade de Almaty, a maior e mais importante cidade do Cazaquistão. O Kairat apresenta a média de assistências mais alta do campeonato com mais de 8 mil espectadores, ainda assim escassos para os mais de 26 mil lugares que compõem as bancadas do seu estádio. Em relação às competições europeias, e como já foi referido, o clube está beira de um feito inédito e mesmo que tal não se concretize, já melhorou o desempenho da última temporada, em que acabou afastado pelos dinamarqueses do Esbjerg na segunda pré-eliminatória.

Em 2013, o Kairat tornou-se no primeiro clube cazaque a inaugurar a sua própria academia, sob a coordenação do holandês Patrick van Leeuwen, antigo treinador das camadas jovens do Feyenoord e coordenador da formação do Shakhtar Donetsk – substituído entretanto pelo português Miguel Cardoso, antigo adjunto de Domingos Paciência, no clube ucraniano – e que também acumula as funções de director desportivo.

No início de 2015, o clube estabeleceu uma parceria com o Sporting que visa sobretudo a troca de experiências ao nível das metodologias de treino, até porque não é crível que nos próximos tempos, algum dos jogadores do Kairat apresente qualidade suficiente para representar o clube leonino. Mais um sinal de que o Kairat tem os olhos postos no futuro e que está disposto a aprender com os melhores, neste caso, no que há formação de jovens jogadores diz respeito, ou não fosse o Sporting uma referência mundial nesse aspecto.

O plantel do Kairat é composto maioritariamente por jogadores nacionais, até porque os regulamentos da liga só permitem a inscrição de 8 atletas estrangeiros e a utilização de 5 deles em simultâneo. O ponta-de-lança Gerard Gohou é a principal figura da equipa. Depois de uma passagem fugaz pelo futebol russo, o costa-marfinense, que já coleccionou o título de melhor marcador no campeonato marroquino e na segunda divisão turca, chegou ao Kairat na última temporada e apresenta uma média de golos invejável: 39 em 52 partidas. É o melhor marcador do campeonato. Nas suas costas actuam o brasileiro Isael, que já representou o Nacional da Madeira; Sito Riera, irmão mais novo do antigo internacional espanhol Albert Riera, que aos 33 anos, parece ter descoberto uma nova vocação, a de jogador de poker; e o capitão de equipa Bauyrzhan Islamkhan. Tem apenas 22 anos, mas já é considerado o maior talento do futebol nacional. Foi eleito o melhor jogador do campeonato na última temporada, pretexto mais do que suficiente para arrecadar o prémio de jogador cazaque do ano em 2014.

No meio-campo, reside o jogador mais reputado desta equipa e o seu reforço mais sonante: Anatoliy Tymoshchuk, campeão europeu em 2013 com o Bayern de Munique. Apesar das propostas que recebeu dos Estados Unidos e do Médio Oriente, o veterano de 36 anos deixou-se seduzir pelo projecto ambicioso do Kairat, que nas próximas semanas também poderá anunciar a contratação do internacional russo Aleksandr Kerzhakov, antigo companheiro de Tymoshchuk no Zenit de São Petersburgo. Resta saber se este conjunto de jogadores apresentará argumentos suficientes para levar a melhor sobre o Bordéus no conjunto das duas mãos.

Mas o Kairat não é o único clube do Cazaquistão a dar cartas no futebol europeu. Depois de afastar o campeão esloveno Maribor e o campeão finlandês HJK, com um golo dramático no último minuto do período de compensação, o Astana garantiu um lugar no playoff da Liga dos Campeões, onde irá defrontar o APOEL de Domingos Paciência. E se o campeão cipriota não poderia estar mais satisfeito com o sorteio, não deixa de ser verdade que o Astana também não parece muito atemorizado com o seu adversário. Garantido está já um lugar na fase de grupos da Liga Europa, em caso de derrota.

Fundado em 2008 como Lokomotiv Astana, o clube da capital não demorou a conquistar o seu espaço no panorama nacional. Às duas taças conquistadas em 2010 e 2012, o Astana acrescentou-lhes o seu primeiro título nacional na última temporada. O clube é financiado pelo Samruk-Kazyna, um fundo governamental que controla as principais companhias de exploração de gás natural, petróleo e urânio do país, e que está disposto a injectar muitos milhões para transformar o Astana numa potência do futebol internacional. Um objectivo já assumido pelo actual presidente da República do Cazaquistão, o ditador Nursultan Nazarbayev, que em 2009, inaugurou um dos estádios mais modernos do futebol europeu: a Astana Arena, com capacidade para 30 mil espectadores.

A aposta destes dois clubes ganha reflexo no compromisso e na forma como a federação se tem mostrado empenhada com o desenvolvimento do futebol no país. Ao contrário das restantes selecções da Ásia Central (Quirguistão, Tajiquistão, Turquemenistão e Uzbequistão), o Cazaquistão não compete na Confederação Asiática, mas sim na UEFA, que aceitou a sua integração em 2002. Os responsáveis da federação sustentaram esta decisão com base na maior exposição a que os seus jogadores estariam sujeitos, acreditando que os mesmos poderiam beneficiar com a experiência adquirida junto das selecções mais poderosas da actualidade.

Em Julho de 2012, a Federação de Futebol do Cazaquistão assinou um protocolo de cooperação com a Federação Alemã, que culminou com a apresentação do Programa de Desenvolvimento 2012-2022, com vista ao desenvolvimento do futebol jovem. Desde então, foram inaugurados no Cazaquistão, 13 novos centros de futebol – devidamente aprovados pelos responsáveis da federação alemã – que albergam actualmente mais de 3 mil crianças, com idades compreendidas entre os 10 e os 18 anos de idade.

Deste extenso grupo de jogadores – em 2022, estima-se que sejam mais de 10 mil – são escolhidos apenas 26, que serão, posteriormente, enviados para a academia do Olé Brasil, um clube sediado no estado de São Paulo, numa prática muito comum em países como o Japão, para que os atletas possam desenvolver alguns fundamentos básicos do jogo.

Depois de concluída a sua formação, estes 26 jogadores regressam ao Cazaquistão três anos depois, sendo integrados na equipa principal do Bayterek, um clube criado em 2012 com o propósito de servir de ponte para o futebol profissional. Bayterek é também o nome de um dos monumentos mais emblemáticos da capital Astana e representa o crescimento de uma árvore jovem e forte, remetendo-nos para uma ideia de prosperidade futura. No fundo, aquilo que esperamos de um jovem talento. O clube partilha a Astana Arena com o Astana e compete actualmente na segunda divisão.

Muitos destes jogadores figuram nas convocatórias das selecções nacionais de Sub-17 – orientada pelo espanhol Carlos Martorell Bakes, com um percurso de relevo nas camadas jovens do Barcelona e da Federação de Futebol da Catalunha – e Sub-19. A cada três anos, é enviada uma nova fornada, todos eles com 15 anos de idade, sendo que a última delas foi enviada em Março para a academia do Cruzeiro, actual bicampeão brasileiro.

Actualmente na 142ª posição do ranking FIFA, a selecção principal é orientada pelo russo Yuri Krasnozhan, responsável por colocar o clube da sua cidade natal – o Spartak Nalchik – na Primeira Liga Russa em 2005, antes de ficar à beira de um apuramento histórico para a Liga Europa em 2010.

Embora o sorteio para a fase de apuramento para o Mundial 2018 não tenha sido simpático – o Cazaquistão ficou integrado no Grupo E com Roménia, Dinamarca, Polónia, Montenegro e Arménia – é expectável que a equipa apresenta algumas melhorias sobretudo em termos exibicionais, já que a federação, à semelhança de outras em tempos mais recentes – a Albânia é o caso mais flagrante – tem assediado alguns elementos com ascendência cazaque, nomeadamente alemães (durante a Segunda Guerra Mundial, Estaline deportou quase um milhão de alemães que viviam em território soviético nas margens do Rio Volga, para o Cazaquistão e para a Sibéria, com receio que estes pudessem cooperar com o regime de Hitler. Quando terminou o massacre, muitos milhares regressaram à Alemanha, outros tantos ficaram no Cazaquistão).

O exemplo mais mediático é o de Alexander Merkel, antigo internacional pelas camadas jovens da Mannschaft, que despontou pela mão de Massimiliano Allegri no Milan. Hoje com 23 anos, Merkel representa os suíços do Grasshopper. O próximo poderá ser Robert Bauer, internacional alemão pelos Sub-20 e presença regular no Ingolstadt, recém-promovido à Bundesliga. Para que tal se concretize, a ajuda do seu companheiro de equipa e também internacional pelo Cazaquistão Konstantin Engel poderá ser decisiva.

No horizonte, surge também uma possível candidatura à organização do Campeonato do Mundo de 2026, um “apetite” que aumentou significativamente nos últimos dias, depois da cidade de Almaty se ter visto ultrapassada por Pequim na corrida à organização dos Jogos Olímpicos de Inverno 2022, numa decisão que suscitou muita polémica.

Com uma longa tradição no halterofilismo e no boxe, o Cazaquistão aposta agora todas as fichas no futebol, tendo consciência da exposição que o desporto-rei pode oferecer a um país, que depende fortemente dos seus recursos naturais – nomeadamente das vastas reservas de gás natural e petróleo.

As metas são ambiciosas, os meios ao seu dispor sustentam essa ambição, mas quando é que o Cazaquistão se poderá tornar efectivamente numa potência do futebol internacional?

Visão do Leitor (perceba melhor como pode colaborar com o VM aqui!): João Lains

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